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Pão mesmo Pão [sem glúten]

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Até aqui, das várias receitas de pão sem glúten e sem cereais que experimentei, nenhuma me satisfez totalmente. Os resultados nunca se parecem com pão mais tradicional, não se igualam em sabor complexo à massa levedada e falta sempre a crosta crocante de um pão artesanal. Fui repensar em todo o processo de fazer pão, nas minhas experiências e na química alimentar envolvida, numa tentativa de encontrar um resultado melhor.

Comparando com a cozinha, a pastelaria e padaria apoiam-se na ciência e em procedimentos mais complexos, sendo um bom pasteleiro, quase um cientista metódico e rigoroso. São práticas que se apoiam em procedimentos para a manipulação de estruturas que conferem texturas diferentes, como por exemplo as espumas (pão, bolos, claras em castelo), as emulsões (ganaches, cremes diversos) e os géis (arroz doce, gelatinas). Quando fazemos pão da forma tradicional, o objectivo final, é o de criar uma espuma sólida. Inicia-se assim uma amassadura, faz-se a incorporação de ar e dá-se a formação do glúten, a rede tridimensional formada pelas proteínas do trigo. Esta rede vai reter o dióxido de carbono formado na fermentação lavada a cabo pelo fermento panar (a levedura de cerveja Sacharomyces cerevisiae), formando como que uma esponja cheia de gás retido. A massa fermentada (levedada) é cozida, as proteínas da farinha coagulam e o amido gelatiniza. Ao cozer, o gás liberta-se mas a estrutura solidifica, ficando esta rede sólida que é tão apreciada no pão com interior alveolado e crosta crocante. Existem muitos truques para se obterem crostas mais ou menos crocantes, mas esse assunto fica para outro dia. Resumindo, quando o pão é feito a partir de cereais como o trigo, centeio e cevada, o glúten que existe nestes, tem o papel de criar a estrutura de rede que vamos depois cozer no forno e nos dá aquele resultado tão apreciado.

E porque há tanta conversa à volta do glúten?

Hoje sabe-se que além do seu consumo estar implicado na doença celíaca, há cada vez mais provas que atribuem ao glúten características proinflamatórias e de agressão da barreira intestinal. Não estamos a falar só das pessoas que têm sintomas declarados, mas de quase toda a população. Os relatos de intolerância ao glúten na base de cefaleias, cólon irritável, dor abdominal e outras queixas, levam a que seja aconselhado que o evitemos.

Somos seres geneticamente mal adaptados ao consumo diário de cereais, que nos prejudicam o bom funcionamento do trato intestinal. Hoje sabe-se que os cereais como o trigo estão muito alterados e por mais que se procure uma farinha de melhor qualidade, esta não é uma garantia. O trigo actual é já resultante de uma série de processos que o tornaram mais rico em glúten e mais proinflamatório. Essa será provavelmente uma das causas do aumento da incidência da intolerância ao glúten, assim como o excesso de consumo de produtos de trigo. A nossa estrutura genética é basicamente a mesma que a dos nossos ancestrais e estamos adaptados a alimentar-nos de um dieta com base em: proteínas, vegetais, tubérculos, frutas, frutos secos e sementes. O advento da agricultura e a domesticação dos animais com a introdução de outro tipo de alimentos, como o leite, cereais e leguminosas, representam alimentos que foram introduzidos muito recentemente na história da nossa evolução (apenas nos alimentamos destes há 1% de toda a nossa existência). Com a revolução industrial, a facilidade e acesso a alimentos processados e alterados, tem causado uma série de distúrbios e doenças cada vez mais banais no nosso tempo e estamos cada vez mais obesos e doentes.

Quando optamos por retirar cereais e glúten da alimentação, há muitas tentativas de recriar a estrutura do pão, o alimento com o qual temos uma forte ligação emocional. Há necessidade de repensarmos em alternativas saudáveis e com ingredientes mais interessantes nutricionalmente. No entanto não é uma tarefa fácil, pois como vimos anteriormente, sem a proteína do glúten, as tentativas de retenção do gás da fermentação e a criação da estrutura, obriga-nos a repensar numa alternativa a esta malha e que cozinhe bem.

Noutros tempos, dediquei muitas horas a confeccionar e melhorar a produção de pão e treinei uma técnica de produção de pão artesanal feito em casa, que se torna bastante simplificada. Não requer o processo moroso de amassar horas infinitas e a própria massa faz o seu papel de fermentação, mais demorado mas menos trabalhoso. Faz-se inicialmente uma mistura dos ingredientes básicos para fazer o pão, esta massa é colocada durante uma noite no frigorífico, dá-se lentamente o processos de fermentação, a rede tridimensional é formada, retém o gás (produto da fermentação), no dia seguinte o pão é colocado gentilmente num tacho de ferro e cozido dentro deste no forno. Trata-se de uma técnica que facilita em muito a produção de pão caseiro e os resultados são sempre fantásticos.

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Recordando esta técnica óptima em termos de execução e trabalho, pensei que poderia ser aplicada a pães sem glúten. Com a utilização de ingredientes que substituíssem o glúten em termos de estrutura, este processo seria possível. O psyllium e a goma xantana quando adicionados a uma massa mãe, podem fazer o papel do glúten criando a malha ou estrutura, quando na massa existem agentes de promoção de uma levedação (fermento de padeiro, açúcares para o alimentar e produção de gás que ficará retino na “rede” formada pelo psyllium ou da xantana). Ao pensar nestes agentes como os criadores da rede que produz a espuma sólida, na verdade a liberdade criativa é muito maior. Podemos usar ingredientes que não o trigo, mas pseudocereais, farinhas de frutos secos, farinhas de tubérculos ou de vegetais, como a fonte de alimento do nosso fermento.

(onde encontrar o, ver aqui: Psyllium husk)

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Estou muito contente com este resultado, com esta receita e processo em que se consegue um pão caseiro, fácil, com excelente textura, crosta crocante e sabor complexo que lembra o pão ácido Alentejano ou o sourdoght (pão de massa ácida). Espreitem a receita e façam os vossos pães caseiros e deliciosos.

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Ingredientes:

(12 pãezinhos ou 2 pães maiores)

 

-300g farinha de teff (trigo sarraceno, quinoa, amaranto, aveia…)

-100g farinha de coco

-300g polvilho

-2 c.sopa psyllium husk

-2 c.sopa azeite

-1 c.chá de sal

-11g levedura seca, tipo Fermipan (1 saqueta) ou equivalente (se usar fermento de padeiro deverá usar cerca de 22g. Encontra em forma de blocos prensados. Verifique se são sem glúten e deve guardá-los no frigorífico, pois o prazo de validade é curto) – leveduras Sacharomyces cerevisiae

-1 c.chá açúcar de coco

-450-500ml água morna (a quantidade deve ser ajustada conforme a farinha que se utilizar)

 

Procedimento:

Massa base

1.Juntei os ingredientes sólidos num recipiente.

2.A cerca de 100ml de água morna, juntei o fermento e o açúcar de coco e deixei repousar uns 5 minutos.

3.Adicionei a mistura anterior aos elementos secos e a restante água morna. Misturei muito bem. Tapei o recipiente e deixei no frigorífico durante a noite.

(Com esta massa refrigerada, é possível todos os dias, durante 5 dias, fazermos pão fresco).

2ª Fermentação

4.Para fazermos o pão, retira-se uma porção da massa levedada e forma-se uma bola ou pequenas bolinhas (atenção que a massa é um pouco peganhenta e não aumenta muito de tamanho, não fiquem preocupados, depois no forno porta-se bem). Se tiverem um cesto de fermentação (onde encontrar? ver aqui), coloca-se um pouco de polvilho e de seguida a massa. Tapem com película aderente à superfície e deixem repousar cerca de 1h.

Cozedura

5.Para cozer, pré-aqueçam o forno a 180ºC.

6.Para se cozer a massa, coloca-se no tabuleiro de forno, faz-se uns golpes na superfície da massa (gosto de fazer em cruz) e coloco por cima o tacho de ferro aquecido a cobrir (arranjei este truque que permite que o pão coza melhor, aquecendo a base de um tacho de ferro, para simular um forno de cozer pão). Leva-se ao forno 1h tapado com o tacho de ferro pré-aquecido.

Se fizerem pãezinhos individuais o tempo de forno será menor, cerca de 30 minutos em cima do tabuleiro e destapados (sem os passos seguintes, que servem para obterem um pãozinho mais chique).

tacho ferro forno

7.Ao final de 1h, destapa-se e coloca-se o pão em cima de uma grelha e coze mais 30 minutos, arejando a base, de forma a que o calor circule mais uniformemente para o interior do pão.

8.Retirar do forno e deixar arrefecer sobre uma grelha.

De início pode parecer um procedimento/receita complexa, mas no fundo torna-se muito simples. Requer algum método, como todos os procedimentos de pastelaria, mas quem o experimentar ficará rendido. Boas experiências, por aqui continuamos num WIP!